O homem aberto e o mundo fechado

 


"Certamente, não há possibilidade de diálogo entre um homem aberto e um mundo fechado", disse Barmen sobre o Fausto de Goethe. Mas será mesmo? Quão pretensiosa é minha atitude agora, mas não voltarei atrás em me considerar no papel do "homem aberto" – ao menos por enquanto.
 
Essa frase me traz a cabeça todos os momentos em que planto em terreno árido um comentário sobre algum fato ou evento do cotidiano que tenha uma repercussão política, ética, ecológica. Chamo de terreno árido qualquer situação – às vezes a presença de apenas uma pessoa – fora do meu círculo de afinidades de pensamento. Nesses momentos normalmente me arrependo de ter dito alguma coisa que vai de encontro com o que há de mais basilar na nossa cultura. Algo que para desviar do constrangimento de atingir o que parece ser básico para a maioria das pessoas (que muitas vezes tomam isso como uma agressão pessoal) necessitaria de que voltemos atrás em algumas premissas para mostrar onde cada opinião está se fundamentando e onde elas rompem definitivamente para ir em direções opostas. 

Claro que o exemplo contido na frase de Barmen não é totalmente transferível a minha realidade. Quando digo que me sinto como Fausto é estritamente por me sentir mais aberto, mais fluido e menos contido por fronteiras e categorias objetivas. Fauto era um fomentador moderno diante de um mundo que não escapou do medieval. Um mundo onde os "condicionalismos feudais" ainda não vieram totalmente abaixo, onde a devoção, a renúncia em nome da fé e a autocastração "são os únicos caminhos para a virtude". Enquanto eu, um projeto degenerado entre a anarquia e o  niilismo positivo, vivo em um mundo onde o Estado já obteve "um controle meticuloso e ubíquo sobre todos os aspectos da vida humana que os antigos poderes haviam deixado para os recursos coletivos locais (…) e o direito e os meios legais para interferir em áreas das quais os antigos poderes, embora opressivos e exploradores mantinham distância" (Bruce Wayne, 2003). 
 
Quanto mais fundamentais são as discordâncias, mais trabalhoso é o debate e mais facilmente tendo a me arrepender de entrar nele sem que ambas as partes se disponham inteiramente. Um exemplo: estava passando de carro com minha mãe pela Linha Verde, em frente à Cidade Administrativa – a nova sede do governo de Minas Gerais, projetada por Oscar Niemeyier e localizada na saída norte da cidade. Fiquei surpreso ao ver pela primeira vez a obra concluída. Ela não pôde deixar de demonstrar sua admiração e perguntar se eu não concordava. “Deviam queimar tudo isso com o Niemeyer dentro”, respondi ironicamente e com o bom humor, mas com a profunda sinceridade de quem deseja ver o velho morto calcinado em uma de suas pirâmides antes que apronte mais uma das suas. O nível de intimidade permitiu que eu soltasse essa pérola, mas não impediu de desejar não tê-lo feito. Ela me perguntou como eu podia falar uma coisa dessas “sem conhecimento de causa” e ainda emendou em defesa do projeto alegando que foi ecologicamente pensado para reaproveitar água e “diminuir os impactos ambientais”. Respondi perguntando como ela concluiu que não tenho conhecimento de causa e se ela realmente acha que aproveitar água e reciclar o lixo não é nada mais que diminuir a velocidade na qual corremos em direção ao abismo, mas não alterar sua trajetória.

Aécio Neves acompanha obras da Cidade Administrativa que vai garantir R$ 80,9 milhões por ano ao Governo de Minas

 

Agora comparo e imagino como seria mais fácil se apenas discordássemos entre reciclar ou não o lixo lá produzido, mudar ou não a sede do governo de lugar, pagar ou não melhores salários aos mais de três mil trabalhadores que arriscaram suas vidas para construir essa obra faraônica. Mas não, discordamos em pontos que gerariam debates muito mais profundos do que qualquer um de nós gostaria de ter ali. Ainda tentei contornar o clima de rebeldia sem causa, citando (mais uma vez) Barmen em sua crítica ao projeto arquitetônico de Brasília (numa dupla coincidência, uma obra ainda mais faraônica do próprio Niemeyer), ao dizer que uma sede do governo estadual isolada do centro da cidade não tinha a ver com os ideais democráticos uma vez que praticamente impossibilita que movimentos sociais se reúnam e venham para se comunicar com seus governantes. Completando que é óbvio que aqueles que projetaram a cidade não vivem em suas ruas inóspitas e sugestivamente controladoras, pensadas para enaltecer a visão e a obra de grandes homens e desvalorizar presença das pessoas comuns. "Para homens moderno, pode ser uma aventura criativa construir um palácio, no entanto ter de morar nele pode virar um pesadelo" (Barmen, 1982)


Me pergunto: quando é que conversaremos sobre o que realmente interessa? Como, por exemplo, se precisamos ou não construir mais um prédio; viver ou não sob um estado; aceitar ou não que a civilização se alimente do mundo para manter seu crescimento insustentável e cuspir de volta lixo tóxico e campos estéreis. De certa forma ainda limitamos nossas criticas radicais (que se referem às raizes! Clamo pelo dia que não mais sentirei o peso de abrir esse parêntesis) aos diálogos herméticos dos meus círculos de afinidades políticas ou aos debates semi-abertos, sem muita participação ou adesão de forasteiros. Ainda caminhamos a passos curtos se comparados a "eles", Faustos e Aécios que firmaram contrato com Mefisto.   

 

  

Ou então o limite dos textos, canções, eventos e manifetações. Esses são talvez um dos únicos meios eficientes de germinar a semente dessas questões em mais cabeças pensantes. Mas a frase de Barmen ainda me parece intacta em seu tom conclusivo. Me sinto em um mundo fechado em seus paradigmas, disposto a questionar-se até um limite que considero muito estreito. Gostaria de ver esse debate atingindo todos os cantos da nossa cultura. Mas parece que ainda é difícil competir com conformismo das criticas parciais e com a letargia da vida comum dos que barganham qualquer risco de liberdade por uma promessa de futuro seguro. Gente que vive "em circunstâncias infelizes e, contudo, não tomam a iniciativa de mudar sua situação porque estão condicionadas a uma vida de segurança, conformismo e conservadorismo, tudo isso que parece dar paz de espírito, mas na realidade nada é mais maléfico para o espírito aventureiro do homem que um futuro seguro"(Alexander Supertramp, 1992).


Catarina Disangelista

 

 

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